quinta-feira, julho 15, 2004

OQUANGOs

Uma nova aberração

"As OQUANGOs infestaram o setor público
brasileiro. São organizações 'quase
não-governamentais' e vivem atreladas
ao orçamento oficial. Não conheço nenhuma
que seja criativa, ousada ou crítica"

A primeira vez que soube das OQUANGOs foi lendo uma crítica à reforma do Estado de Margaret Thatcher. Como se chamaria uma suposta organização não-governamental instalada em prédio do governo e tendo como única fonte de financiamento o orçamento oficial, não raro de uma única agência governamental? Certamente não ofenderíamos as ONGs autênticas chamando aquelas organizações de não-governamentais. Isso elas não são. O correto seria, para sermos justos, chamá-las de "organizações quase governamentais", mas, aí, beiraríamos o chulo. Vamos, então, chamá-las de organizações "quase não-governamentais". OQUANGOs. Essas aberrações infestaram o setor público brasileiro nos anos recentes.
As organizações não-governamentais constituem relativa novidade, pelo menos na expressão quantitativa e qualitativa que têm hoje. Constituem espaço de ação pública, nem estatal nem privada. São importante componente da democracia, desde que criadas e sustentadas de acordo com certas regras. A primeira, de independência em relação aos governos. Ora, nenhuma organização da sociedade pode ter autonomia política e ideológica se não for financeiramente independente. Outra é a separação da estrutura partidária. Nenhuma organização pode ser autônoma e isenta se for braço operacional de partido político.
Não conheço fundação privada séria que não imponha três condições para financiar uma ONG: busca da sustentabilidade por meio da criação de receita própria e da diversificação das fontes de financiamento; transparência em relação a suas ações e sua gestão financeira; e avaliação permanente de desempenho. Não conheço ONG séria que não observe essas condições. Não é que, para ser auto-suficientes, as ONGs devam se transformar em empresas. Seria desvirtuá-las. Mas a sustentabilidade será tanto maior quanto maiores forem a parcela de recursos autogerados e a contribuição de financiadores independentes – eles mesmos fundações privadas ou ONGs – em seu custeamento, em relação aos recursos governamentais. ONGs que vivem atreladas ao orçamento governamental são esse outro animal, são OQUANGOs.
Não existe OQUANGO que obedeça às condições acima: não buscam a sustentabilidade por meio da diversificação das fontes de financiamento nem pela criação de receitas próprias. Tentam perenizar seus vínculos com o orçamento oficial. Não conheço OQUANGO criativa, ousada ou crítica. São adeptas do básico. Respondem às demandas governamentais. No máximo, tratam de criar novas demandas, para se manter eternas fornecedoras.
Na Inglaterra thatcherista e no Brasil, as OQUANGOs servem para elidir as restrições inerentes às agências governamentais. Uma parte do gasto público é transferida para essa área "quase não-governamental". Esse gasto se torna menos transparente e se fecha ao escrutínio da sociedade. Muitas OQUANGOs conseguem escapar aos órgãos fiscalizadores. O Brasil burocratiza para controlar, quando deveria estabelecer marcos regulatórios que assegurassem transparência e lisura sem burocracia e sem excesso de controles. Esses excessos estimulam truques como as OQUANGOs.
Toda ONG verdadeira deveria se opor a essa apropriação da designação de "não-governamental" pelas "quase-governamentais". Organização não-governamental deveria ser apelação de origem controlada, como se faz com os bons vinhos: só deveriam merecê-la aquelas entidades que, efetiva e comprovadamente, obedecessem às condições de qualidade, transparência e sustentabilidade que legitimam e justificam esse território de ação pública não-estatal e não-privado. O uso dessa denominação por organizações que não a merecem põe em risco a credibilidade das verdadeiras ONGs. Especialmente quando a falta de rigor e as irregularidades nas transferências de recursos para OQUANGOs criam a possibilidade de escândalos.
Manuel Castells, em artigo recente, fala das ONGs como uma resposta à crise de transparência, legitimidade e eficiência do Estado. Misturadas às OQUANGOs, porém, podem se tornar parte dessa crise, e não sua solução.

Sérgio Abranches é cientista político (sergioabranches@sda.com.br)
Fonte - Veja 12/07

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