Cinqüenta anos de observação são insuficientes para entender muitos dos conceitos, ou impulsos, ou lá o que seja, do que alguns chamam, à falta de melhor denominação, de "imprensa escrita, falada e televisada". Minha intuição é de que, se dispusesse de outros tantos anos, o que felizmente é impossível, continuaria na mesma perplexidade. Incapaz de compreender se os conceitos fundamentais do dia-a-dia da comunicação, os conceitos automáticos que valorizam umas e desprezam outras notícias pelo mundo afora, refletem na sociedade humana a natureza simplória do jornalismo ou são reflexos das perversões que, entre outros feitos, fazem do planeta um palco de infinita luta mortal entre os humanos.
Tanto faz se praticado por terroristas ou militares, o ataque a populações civis indefesas é a mesma monstruosidade. O que se passou na escola em Beslan reproduz, com peculiaridades locais, morticínios equivalentes e mesmo piores, em uma fileira multimilenar que o nosso tempo tem aumentado mais do que sempre. Poucos, no entanto, têm causado pasmo e clamor, o que se constata com a mais simples observação do seu tratamento noticioso, muito semelhante em todo o mundo.
A mortandade das crianças em Beslan aturdiu até os compatriotas solidários, na causa da independência tchechena, aos terroristas. Jornais, televisões e rádios não se pouparam na contaminação universal do sentimento de horror. Seria por uma razão aritmética? Afinal, no Oriente Médio as crianças não são menos crianças que as de Beslan, matá-las não é menos monstruoso do que foi em Beslan, e as crianças perversamente mortas todos os dias no Oriente Médio são em número muito, muito maior que as de Beslan, mas suas mortes não recebem mais do que o tratamento noticioso comum a um acidente de trânsito.
No Sudão, no Tchad e em outras partes da África o legado do colonialismo europeu mata crianças, de fome e de tiro, como insetos, com regularidade que o tempo não altera. Outra batida perturbadora do trânsito.
"The New York Times" publicou, há três dias, perto de 900 pequenas fotos e mais cem nomes: eram, àquela altura em número de 1.004, os soldados dos Estados Unidos mortos no Iraque. Total de 12 a 14 vezes menor que o de civis iraquianos mortos. A chegada a mil dos mortos dos Estados Unidos mereceu espaços nas primeiras páginas e destaque nos telejornais em todo o mundo, coroamento do realce merecido por cada número redondo dessa fatalidade.
E as crianças iraquianas, quantas são nos 12 a 14 mil mortos civis? Bem, as estatísticas conhecidas não se ocuparam de tal pormenor. Não importa, suas fotos e vídeos chegam todos os dias às redações em todo o mundo. São milhares de crianças. Não são menos vidas nem menos crianças que as se foram em Baslan. Mas não importam. Acidentes de trânsito que nem valem como notícia.
É a ocorrência simultânea que cria o choque de horror? Não é a morte absurda, não é a vida injustiçada, não é a inocência punida, não é a monstruosidade humana? Não é nem o número, é só a simultaneidade? Quem preferir uma variação do mesmo tema, ei-la: 80 mortos em desastre aéreo valem mais do que 100 civis, em grande parte crianças, mortos por ataque militar no Oriente Médio, como se viu há poucos dias - e sempre se verá a cada tragédia aérea.
Uma recomendação do jornalismo em todo o mundo: crianças, morram simultaneamente, às dezenas, às centenas, aos milhares, não importa, mas que sejam mortes simultâneas, para que mortes monstruosas de crianças choquem de comoção a sociedade humana e seus jornais, televisões e rádios - a sua voz, dizem.
Janio de Freitas - Jornal Folha de São Paulo
terça-feira, setembro 14, 2004
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