quarta-feira, janeiro 19, 2005

O SISTEMA...


Bispo defensor dos pobres desafia o Vaticano. Casaldáliga se rebela contra ordem e permanece em sua diocese O bispo catalão Pedro Casaldáliga, símbolo da "teologia da libertação", passou da idade da aposentadoria (75 anos). O Vaticano se dispõe a designar um novo titular para a prelazia da localidade brasileira de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso. Durante 33 anos, Casaldáliga desenvolveu um trabalho social a favor dos indígenas e dos camponeses. Casaldáliga desafiou Roma e se rebelou contra a hierarquia eclesiástica ao se negar a abandonar sua diocese. Pede métodos mais democráticos na hora da indicação de bispos, e que o nome de seu sucessor tenha a aprovação da comunidade à qual deverá servir. Mas suspeita de que o novo prelado não vá compartilhar suas idéias. O bispo é chamado carinhosamente de Pedro por seus fiéis. Apaixonado pelos mais pobres e humildes, no caso indígenas, agricultores e negros, o bispo catalão se vê obrigado (aos 76 anos e doente) a deixar a diocese na qual trabalhou durante 33 anos. Nesse tempo levou uma vida de pobreza e combateu os métodos do Vaticano para a escolha dos bispos, que considera antidemocráticos. Por isso nega-se a abandonar a cidade antes que chegue seu sucessor. Pedro Casaldáliga foi se transformando ano após ano em um símbolo vivo da Igreja renovadora do Concílio Vaticano: sempre quis compartilhar a vida dos mais pobres de sua diocese, viajando dias inteiros de ônibus como eles, vivendo em uma casa de extrema pobreza e sempre enfrentando os poderosos. Já foi ameaçado de morte, assassinaram alguns de seus colaboradores e passou por cinco processos de expulsão. O Vaticano o convocou para um julgamento doutrinário e, apesar de ser uma das figuras mais limpas e comprometidas do episcopado mundial, nunca o nomeou cardeal. Depois de completar 75 anos, idade em que os bispos devem pôr a diocese à disposição do Papa, Roma iniciou a busca de um sucessor. O Vaticano exige que ele abandone a cidade de São Félix antes da chegada do novo bispo, cujo nome continua uma incógnita. "Estou entre a espada e a parede", disse Casaldáliga ao El País, "porque sou um filho obediente da Igreja, mas ao mesmo tempo não posso permitir que continue usando métodos antidemocráticos na relação do Vaticano com os bispos, nomeando-os sem a menor consulta à comunidade local que o vai receber." Casaldáliga defende que a "religião é resistência", que "a fé é resistência" e que resistir ao que considera contrário à própria consciência é o dever do bom cristão. E por isso decidiu resistir. "Tudo parece uma expulsão em regra, e não uma substituição cristã." "Se o Vaticano teme os fiéis recebam a pedradas o sucessor de Casaldáliga, se engana", dizem em São Félix. A comunidade avisou que receberá com carinho o futuro bispo, e mesmo que este não atue em favor dos pobres estariam dispostos a manter uma situação de "conflito cristão". Missionário claretiano, Casaldáliga não perde o humor nem nos momentos mais duros. Costuma citar a poeta Cecília Meireles --"não sou pessimista nem otimista, sou poeta"-- e se refugia na poesia como fez quando empreendeu sua luta contra a ditadura militar, contra os latifundiários ou mesmo o Vaticano. "Gostaria de morrer de pé, como as árvores", costuma dizer, citando o poeta, agora que sofre de Parkinson, diabetes e hipertensão. Casaldáliga apostava em passar em São Félix os últimos anos de vida, ajudando seu sucessor no trabalho pastoral "como simples sacerdote", continuando seu trabalho ao lado dos mais pobres da diocese, desde que seu sucessor se comprometesse a manter vivo o trabalho social realizado durante quase 40 anos. Agora, o Vaticano praticamente exige sua saída da cidade para deixar o caminho aberto a seu misterioso sucessor. "Pela maneira como estão fazendo as coisas, imagino que não vai ser de nossas idéias", comenta o bispo. A hierarquia eclesiástica brasileira não se pronunciou sobre sua substituição. Entende que é um assunto que compete ao Vaticano. Mas é sabido que a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) é muito aberta em questões sociais e sempre apoiou Casaldáliga. O que fará então? Ainda não decidiu. Tinha a ilusão de se aposentar numa diocese pobre da África como simples sacerdote. "Estou doente e lhes criaria transtornos, mais que qualquer outra coisa", diz. E acrescenta: "Meu sonho era dar minha morte à África, já que não pude lhe dar minha vida". É improvável que permaneça na diocese, confessa, nas proximidades do Santuário dos Mártires, levantado em honra de todos os assassinados em São Félix. Ideologicamente, o bispo Casaldáliga não se sente revolucionário mas simplesmente um "cristão rebelde em sua fé". Continua pensando que "a vida de um bispo não vale mais que a de um pobre camponês". Durante uma viagem com a organização Mãos Unidas a São Félix, relatou a um grupo de jornalistas espanhóis que sempre se negou a fechar com chave a porta de sua casa. "Se quiserem me matar, podem fazê-lo a qualquer momento. Meus camponeses também não estão protegidos." Dorme em um quarto com duas camas. Uma está à disposição de qualquer visitante que não tenha onde passar a noite. Ao ser questionado se havia acolhido em sua casa algum bispo, só respondeu com um sorriso. Quando o episcopado brasileiro se reúne em Brasília, costuma criticar que ele perca dois dias indo à reunião de ônibus, em vez de viajar de avião. Responde que emprega o mesmo tempo que seus camponeses em ir a Brasília para vender um saco de feijão. Costuma dizer que o que preenche sua vida é que tem consciência de que conta "com a misericórdia de Deus" e, especialmente, com o carinho de seus fiéis. Sobretudo dos mais humildes e das crianças. E se comove ao lembrar quando uma menina de 6 anos, ao acabar a missa, lhe perguntou: "Pedro, posso chamá-lo de vovô?" "Pátria grande" Casaldáliga tem uma grande paixão pela América Latina. Ele sempre diz isso. E o demonstra. Desde o início dizia que trabalhando nesse continente "havia queimado as naves" e que nunca voltaria à Europa. Teve que ir só uma vez a Roma por decisão do Vaticano para submeter-se a um processo. Sua família se transferiu à capital italiana para poder abraçá-lo. De Roma voltou ao Brasil. Nunca viajou à Espanha. Nem mesmo para receber os prêmios que ganhou. Tampouco por ocasião da morte de sua mãe. Passou os 33 anos de sua vida pastoral em São Félix, um município com apenas 100 mil habitantes. Ao lembrar sua luta em defesa dos direitos dos despossuídos, costuma dizer: "Meu lema é o do poeta colombiano que diz: 'Se não amas tudo, compadece-te de tudo'. Vivi tensões fortes, mas nunca odiei, mas sim, tive raiva diante de muitas injustiças". Como se sente neste momento o lutador e poeta religioso catalão? "Realizado, sim; orgulhoso, não; satisfeito, não; tranqüilo, sim. A América Latina é minha pátria grande, uma experiência de sacramento que abriu minha alma para Deus e para a humanidade." Hoje, como sempre, o lema desse religioso tão perseguido quanto querido continua sendo o mesmo: "Não possuir nada, não levar nada, não pedir nada, e de passagem não matar nada".

Fonte - El Pais - Juan Arias - Rio de Janeiro Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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