terça-feira, novembro 09, 2004


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Celebridades úteis investem no marketing social
Cresce o número de atletas e artistas buscando imagem humanitária

Afsané Bassir Pour
Em Paris

"O mais duro é não chorar", confia Angelina Jolie, cujos grandes olhos verdes se enchem de lágrimas quando ela conta a sua primeira missão a serviço do Alto-Comissariado para os refugiados (HCR) em Serra Leoa. "Os rebeldes haviam feito da mutilação dos bebês uma arma de guerra. Como esquecer dos olhares desses bebês sem braços, sem pernas? São cenas que são impossíveis de esquecer".
Já faz três anos que a atriz que encarna Lara Croft no cinema foi tomada por uma paixão pelas populações errantes do planeta, a ponto de se tornar uma porta-voz muito poderosa desses povos refugiados, expulsos de suas terras.
Foi durante a filmagem de "Lara Croft" no Camboja que ela se deu conta de que "existia um outro mundo --que não o dela-- e que nele as crianças estavam muito infelizes". Uma "grande admiradora" de Kofi Annan, o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), ela lhe propôs portanto a sua ajuda e acabou se tornando, em 2001, embaixadora de boa vontade do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os refugiados (HCR).
Desde então, ela vem percorrendo o mundo, indo ao encontro dos refugiados e, com isso, atrai a atenção dos veículos de comunicação. A mãe adotiva de um pequeno cambojano chamado Maddox, Angelina Jolie acaba também de doar US$ 1 milhão (R$ 2.817,8 milhões) para o HCR.
"O meu trabalho para o HCR deu um sentido à minha vida", garante a atriz, que, até então, não conhecia outro lugar que Hollywood. "Antes disso", prossegue, eu só vivia para mim; agora, pela primeira vez na minha vida, eu me sinto útil e realmente muito mais feliz".
A sua mais recente missão remonta ao mês de junho, no Chade. Lá, ela se encontrou com refugiados da região sudanesa do Darfur, que estavam fugindo das ações de limpeza étnica promovidas por milícias árabes. Depois desta viagem, Angelina Jolie deu início a uma turnê que obteve grande repercussão na mídia, nos Estados Unidos.
"Graças a ela, o Sudão apareceu nas manchetes dos jornais da América profunda; o que mais se pode pedir a uma estrela?", explica Abou Dungus, que lida em nome da ONU, dentro do possível, com os caprichos de cerca de 40 celebridades. "Quando Angelina Jolie fala do Darfur na televisão, as pessoas ouvem o que ela tem a dizer, mais quando um funcionário da ONU fala do mesmo assunto, eles passam para um outro programa".
A estrela americana faz parte de um grupo de cerca de 120 embaixadores de boa vontade da ONU. Assim como o HCR, todas as agências das Nações Unidas --exceto, de maneira estranha, o Escritório das Nações Unidas contra as drogas (cuja sigla é ODCCP)-- também têm as suas estrelas, oriundas de mundos diferentes: música, cinema, negócios, política, algumas poucas dos esportes, também, mas muito raramente do mundo da moda, com exceção do antigo patrão da griffe da alta-costura Yves Saint Laurent, Pierre Bergé.
Essas personalidades emprestam a sua imagem, o seu talento, o seu tempo e, com freqüência, doam os seus milhões a fim de ajudar os outros. Elas são, segundo o ator Michael Douglas, "celebridades úteis".
Tudo começou em 1954, dentro de um avião. Num vôo transatlântico, Maurice Pate, o primeiro diretor executivo do Fundo das Nações Unidas para a infância (Unicef), encontra-se sentado ao lado de Danny Kay, o célebre ator americano.

No final da viagem, este último está convertido à causa da Unicef. Ele decide então utilizar o seu próprio avião e percorrer o mundo --o que ele continuará fazendo durante 33 anos-- para ir ao encontro das crianças e dar conta de seu desamparo ao regressar. Depois dele virão Peter Ustinov, Harry Belafonte, Vanessa Redgrave, Nana Mouskouri, Barbara Hendricks...
Mas foi Audrey Hepburn, que, durante anos personificou o engajamento humanitário de certas estrelas. Uma filha da guerra, a atriz havia vivenciado "a miséria total" na Holanda ocupada, e ela nunca esqueceu, dizia, de que fora a Unicef que a alimentara na Liberação. Ela mais do que retribuiu o favor a esta organização, dedicando-lhe os dez últimos anos de sua vida, viajando de um extremo ao outro do planeta até a sua morte, em 1993, aos 63 anos.
Se as pessoas gostam tanto da Unicef, esta deve a sua imagem em grande parte ao "anjo das crianças", conforme era apelidada Audrey Hepburn. Até hoje, ainda, os membros dos serviços humanitários citam-na como exemplo.
"O que mais me deixou espantada, recorda a sua grande amiga, a escritora italiana Anna Cataldi, é que os refugiados adoravam-na mais que tudo; eles não tinham a menor idéia de quem ela era, mas era ela que eles amavam".
A paixão de Audrey Hepburn era contagiosa: naquela época, muitos acompanharam com a atenção a odisséia da inesquecível heroína de "Breakfast At Tiffany's" ("Bonequinha de Luxo", 1961) no mundo da ajuda humanitária.
Assim, Roger Moore, fascinado pelo envolvimento de Audrey Hepburn, juntou-se a ela na Unicef. Nesta organização, o ex-James Bond permanece até hoje. Ele inicia invariavelmente as suas coletivas de imprensa com o seguinte bordão:
"O meu nome é Moore, Roger Moore, e eu estou de volta de uma missão humanitária". "Eu devo muito a James Bond", indica o ator inglês. Graças a ele, eu posso trabalhar para a Unicef". O personagem do agente 007 lhe permite também "encontrar muitos chefes de Estado que querem ver James Bond de perto!".
Desde a chegada de Kofi Annan à frente da ONU, em 1996, as portas se abriram para uma nova geração de estrelas, tais como a antiga Spice Girl Geri Halliwell, ou ainda a cantora beninense Angélique Kidjo. O secretário-geral, que fez da "parceria da ONU com a sociedade civil" a terceira etapa da reforma de sua organização, precisa de estrelas, e estas, ao que tudo indica, só querem ajudá-lo.
Kofi Annan criou uma nova categoria, os "mensageiros da paz", reconhecíveis pela pomba branca que eles têm na lapela. Por enquanto, eles são nove. Entre eles, estão o boxeador Mohammed Ali, Luciano Pavarotti, Enrico Macias, Anna Cataldi ou ainda Michael Douglas.
Esse último é muito prezado na ONU, pela seriedade do seu trabalho no campo do desarmamento. "Eu escolhi este campo por várias razões", precisa Douglas. "O meu pai --Kirk Douglas-- nasceu em Belarus, e eu queria conhecer a terra dos meus ancestrais, mas, quando lá desembarquei, eu descobri que todas as cidades que o meu pai conhecera haviam sido destruídas pela catástrofe de Chernobyl: elas ficavam na fronteira com a Ucrânia".
O filme de James Bridges, "Síndrome da China" (1979), que conta um dia de crise numa central nuclear, constituiu uma outra razão: "Naquela ocasião, eu aprendi muito sobre esta questão". E a sua ação contra as armas leves?
"Eu era muito amigo de John Lennon", lembra Michael Douglas, acrescentando: "Ser uma celebridade útil' deveria servir para outras coisas além de fazer filmes. Eu utilizo este título para abrir as portas dos senadores, em Washington, e para lhes falar das armas leves e da ONU. Eu me sinto realmente privilegiado por ser um mensageiro da paz", prossegue, "e eu levo o meu dever muito a sério".
Por meio dos seus espetáculos intitulados "Pavarotti e seus amigos", concertos que se tornaram verdadeiros acontecimentos nos últimos dez anos, o tenor italiano, por sua vez, levantou mais de US$ 15 milhões (cerca de R$ 42,27 milhões) para as crianças da guerra. Os "amigos" em questão têm por nome Eric Clapton, Bono, Ricky Martin, Céline Dion, Sting, Stevie Wonder, Liza Minnelli, e há mais outras dezenas deles.
"A música é o oposto da guerra, ela torna as crianças felizes; a guerra as torna infelizes", estima o tenor. "Eu tinha 10 anos no final da guerra; eu conheci os seus horrores". Ele também se diz "muito orgulhoso" do seu status de mensageiro da paz: "É um título um tanto quanto assustador, e eu tento ser digno dele. Eu utilizo o que Deus me deu para tornar a guerra um pouco menos triste para as crianças, e esta é a coisa mais gratificante que eu já tenha feito".
Na França, Emmanuelle Béart, Elsa Zylberstein (atrizes) e Julien Clerc (cantor) também são embaixadores muito ativos. Quanto a Zinédine Zidane, que atua a serviço do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), ele organizou, em dezembro de 2003, em Basiléia (Suíça), com os seus colegas jogadores do Real Madrid, uma partida de futebol "contra a pobreza".
A ONU conhece o valor das estrelas. Mas é para lidar com o ego de algumas dentre elas que ela enfrenta, de vez em quando, dificuldades. Assim, a primeira missão de Julia Roberts para a organização foi também a sua última.
Quando enviada para o Haiti, a estrela de "Pretty Woman" ("Uma Linda Mulher") recusou categoricamente a presença da imprensa. "Sem a presença das televisões, a missão não tinha mais sentido algum", recorda um funcionário da ONU. A idéia não era de organizar uma viagem privada para que a senhora Roberts pudesse segurar alguns bebês nos seus braços e chorar algumas lágrimas diante dos haitianos, que nem sequer sabiam quem ela é".
Algumas décadas antes, uma outra grande dama do cinema que, por sua vez, era italiana, viajara, "em primeira classe e com o seu cabeleireiro", até um campo de refugiados na Somália. Sylvana Foa, que na época era a porta-voz do HCR, não esqueceu deste episódio:
"Sophia Loren não conseguia andar na lama com os seus saltos-agulha! Ela queria absolutamente plantar uma árvore --que idéia! Plantar uma árvore no meio do deserto! -, e, além disso, ela fez questão de dizer às crianças para sobretudo não se esquecerem de regá-la todos os dias".
Mas, "a cena mais alucinante", recorda-se Sylvana Foa, dando gargalhadas, "foi quando Sophia Loren segurou o queixo de uma criança esfomeada, dizendo-lhe: 'mamma mia, mas você está muito magro demais; você precisa me prometer que vai comer mais!'". A sua carreira humanitária foi de curta duração.
Elizabeth Taylor foi muito mais útil. A atriz de olhos violeta e de muitos maridos foi a primeira a se mobilizar contra a Aids. Depois da morte do seu grande amigo Rock Hudson, em 1982, ela fundou a American Association for Aids Research (AmFAR), uma fundação para pesquisas sobre a Aids. Isso porque nem todas as estrelas trabalham para a ONU. Algumas delas preferiram de fato agir por conta própria, o que foi a caso, por exemplo, de Bono, o cantor irlandês do grupo U2.
Este rock star é sem dúvida uma das únicas pessoas no mundo a poder dizer o que ele quer, a quem ele quer. E lá foi ele até o Vaticano para explicar ao papa, e depois para a imprensa, que a sua oposição aos preservativos era criminosa e que isso precisava mudar. Naquele dia, ele chegou a ponto de disparar: "Caso contrário, eu vou ficar muito bravo". Ao recebê-lo, João Paulo 2º tentou acalmar a cólera do cantor católico e dos seus milhões de fãs pelo mundo afora.
Bono também viajou até Washington, mais precisamente para visitar a Casa Branca, onde ele denunciou a posição de George W. Bush em relação à dívida da África. O resultado deste encontro foi que, ao sair do salão Oval, o presidente americano anunciou uma redução de US$ 5 bilhões (R$ 14,07 bilhões) da dívida dos países pobres.
Mas Bono quis ter a certeza de que aquela não era uma promessa de circunstância. Aproximando-se do microfone, ele disse: "Eu lhe sou muito agradecido, senhor presidente, pela sua generosidade, mas agora, seria melhor se o senhor nos mostrasse a cor do seu dinheiro".
Quando ele não está gravando um disco, o líder do U2 explora portanto a sua celebridade. Ele sabe também impressionar os homens do poder com os seus conhecimentos técnicos. "Ele conhece os seus dossiês de cor e salteado, melhor do que qualquer especialista", garante o presidente do Banco Mundial, James Wolfensohn, que se tornou "um amigo e um grande fã" do cantor.
Do seu jeito, Bono transformou o "rock-ativismo", inventado em 1981, pelo seu herói, Sir Bob Geldof (o antigo cantor do grupo The Boomtown Rats). Na época, este havia conseguido arrecadar, com o Live Aid, milhões de dólares para lutar contra a epidemia de fome na Etiópia.
Durante um jantar em Berlim, organizado recentemente pela Global Business Coalition (Coalizão mundial das empresas, CME), para discutir modalidades de luta contra a Aids, foi a vez do chanceler alemão, Gerhard Schröder, e dos patrões das maiores multinacionais de descobrirem as peculiaridades do estilo de Bono.
Segurando com as duas mãos o microfone como se ele fosse cantar "Achtung Baby", ele disse: "O meu nome é Bono, e ich bin ein [eu sou um] rock star e, na qualidade de rock star, eu considero ser também o meu dever de desafinar o coro dos contentes, mas, acredite, senhor Schröder, a história será ainda mais impiedosa com o coro dos contentes, caso o senhor não abrir o seu coração e, sobretudo, a sua carteira para vencer a Aids".
Então, considerando a mesa de honra onde estavam sentados grandes patrões tais como Jürgen Shrempp (DaimlerChrysler), Raymond Gilmartin (Merck), Bertrand Collomb (Lafarge e vice-presidente da CME) e Douglas Daft (Coca-Cola), o cantor disparou:
"Os senhores sabem que não faz parte dos hábitos dos rock stars, passar parte do seu tempo na companhia de homens trajando ternos, mas este rock star que vos fala está precisando de homens de terno. Senhores, vamos dizer as coisas francamente: se nós somos capazes de levar esta bebida marrom escura e gasosa até todos as vilas da África, nós podemos também levar remédios até elas".
Fonte: Uol / Le Monde Posted by Hello

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