domingo, outubro 03, 2004
Por Vladimir Safatle
Na sociedade da insatisfação administrada, a auto-ironia e o cinismo regem os modos de vida
Uma discussão atual sobre um conceito tão nebuloso como pode ser o pós-modernismo deve partir da constatação de que, embora tenha sido posta como era do fim das utopias, a pós-modernidade, em seu núcleo duro, impôs-se como um projeto utópico. Tratava-se de pensar e de fazer agir singularidades puras, multiplicidades não-estruturadas que não se submeteriam mais a modelos estruturais de organização de identidades.
A dissolução do eu como unidade sintética e como locus da auto-identidade estável, o fim dos discursos sociopolíticos com aspirações universais (e, com isto, o fim das metanarrativas e dos horizontes estáveis de socialização), a falência de processos de crítica vinculados à operacionalizaçào de distinções ontológicas entre essência/aparência : todos estes motivos eram conjugados através da promessa do advento de um tempo capaz de afirmar e produzir singularidades puras, fazendo assim um retorno ao que teria sido recalcado pela modernidade e por seus processos de racionalização. O que se segue são apenas algumas notas a respeito destas expectativas utópicas embutidas na ideologia pós-moderna.
Tomemos como exemplo, o discurso da dissolução do eu como unidade sintética. Sabemos como o eu está profundamente vinculado à imagem do corpo próprio, ao ponto em que desarticulações na imagem do corpo próprio afetam necessariamente a capacidade de síntese do eu. Mas, se voltarmos os olhos para a retórica do consumo e da indústria cultural, veremos como elas passaram por mutações profundas que afetaram o regime de disponibilização das imagens ideais de corpo. Ao invés de locus da identidade estável, o corpo fornecido pela industria cultural e pela retórica do consumo aparece cada vez mais como matéria plástica, espaço de afirmação da multiplicidade. Isto levou um sociólogo como Mike Featherstone a afirmar que no interior da cultura do consumo, o corpo sempre foi apresentado como um objeto pronto para transformações1. Aparece assim a imagem do corpo como interface e superfície de reconfiguração que coloca o sujeito diante da instabilidade de personalidades múltiplas e da des-identidade subjetiva.
De fato, a imagem de um corpo reconfigurável já fazia parte do imaginário de certos setores avançados da cultura de massa graças a cineastas como David Cronemberg ("Videodrome" e, mais recentemente "Ex-istenz") e a artistas como Cindy Sherman (com suas séries de auto-retratos em clichês de filme e de moda) e Orlan (com suas performances nas quais seu rosto era reconstruido cirurgicamente a partir dos modelos da beleza clássica: Gioconda, Vênus, Europa, Diana etc.). Mas atualmente tais imagens migraram para o cerne da cultura de consumo através da publicidade.
À primeira vista, poderia parecer que a migração de representações desta natureza estaria marcando com o selo da obsolescência a idéia frankfurtiana da indústria cultural como negação absoluta da individualidade. Pois, ao invés das operações de socialização através da exigência de identificação com um conjunto determinado de imagens ideias, estaríamos agora diante de uma indústria cultural que incita a reconfiguração contínua e a construção performativa de identidades. Na verdade, o setor mais avançado da cultura do consumo não forneceria mais ao eu a positividade de modelos estáticos de identificação. Ele forneceria apenas a forma vazia da reconfiguração contínua de si que parece aceitar, dissolver e passar por todos conteúdos. Isto pode nos explicar porque temos cada vez menos necessidade de padrões claros de conformação do corpo a ideais sociais.
Tomemos um outro exemplo que caracterizaria de maneira mais clara a promessa utópica pós-moderna de ultrapassar a modernidade. Ela vem do campo do político. Grosso modo, diríamos que uma das grandes utopias da modernidade foi a possibilidade de efetivação daquilo que poderíamos chamar de política da felicidade.
Pensemos, por exemplo, nesta declaração de Saint-Just, pronunciada na Tribuna da Convenção em 3 de março de 1794, diante das possibilidades abertas pela Revolução Francesa: A felicidade é uma idéia nova na Europa. Para Saint-Just, a felicidade era uma idéia nova na Europa porque, pela primeira vez, ela poderia guiar a racionalidade das esferas que compõem o político. Neste sentido, o primeiro parágrafo da Declaração que precede a Constituição de 1793 não poderia ser mais claro: O objetivo da sociedade é a felicidade geral ("bonheur commune") e o governo é seu defensor.
Que a promessa de realização de uma política da felicidade apareça em um momento histórico fundador da modernidade política, isto é algo que não nos surpreende. A escatologia própria a toda política revolucionária moderna depende da promessa utópica da efetivação possível de uma realidade jurídica na qual Lei social e satisfação subjetiva possam enfim aparecer reconciliadas. É por levar em conta as aspirações do princípio de subjetividade no interior da esfera do político que podemos dizer que estamos diante de uma noção de felicidade enquanto fenômeno eminentemente moderno.
Notemos a tensão interna à felicidade na sua versão moderna. Ela deve englobar, ao mesmo tempo, imperativos de reconhecimento da singularidade dos sujeitos e imperativos de integração da multiplicidade dos sujeitos na unidade do corpo social e de suas representações. Devemos assim falar em tensão interna à felicidade porque ela deve dar conta de dois imperativos aparentemente antagônicos.
Há então, na aurora do projeto moderno, uma articulação fundamental entre felicidade e universalidade que nos explica, entre outras coisas, porque todos os grandes projetos de teoria política na modernidade (iluministas, Kant, Hegel) estão de acordo em pelo menos um ponto: a ação política que visa a felicidade subjetiva deve produzir a reconciliação objetiva com o ordenamento jurídico de uma figura institucionalizada do Universal (de preferência, com a realidade jurídica do Estado justo).
Kant, por exemplo, falará da ação racional, a única capaz de produzir um agradável gozo da vida (Lebensgenuss) e que no entanto é puramente moral" como ação que visa a realização do reino dos fins, ou seja, a ligação sistemática da diversidade dos seres racionais por leis comuns. No limite, esta realização efetiva dos reinos dos fins nos levaria necessariamente à uma grande confederação de nações, última figura da institucionalização do Universal em um Estado justo. Desta forma, uma reconciliação objetiva entre vontade subjetiva e ação institucional seria possível2. Reconciliação que traria enfim a felicidade (Glückseligkeit), já que a felicidade humana aponta: mais para a auto-estima racional do que para o bem-estar3.
No interior desta política da felicidade, podemos medir o que significa o princípio de disjunção entre Lei e monções pulsionais proposto por Freud. O problema central da análise freudiana do social é moderno por excelência: Grande parte das lutas da humanidade centralizam-se em torno da tarefa única de encontrar uma acomodação conveniente, ou seja, um compromisso (Ausgleich) que traga felicidade entre reivindicações individuais e culturais; e um problema que incide sobre o destino da humanidade é o de saber se tal compromisso pode ser alcançado através de uma formação determinada da civilização ou se o conflito é irreconciliável4.
A resposta freudiana é conhecida: só há compromisso social através da internalização da repressão externa às monções pulsionais, principalmente ao impulso de destruição ligado à pulsao de morte e ao caráter polimórfico da sexualidade, devido ao desenvolvimento de uma consciência moral fundamentalmente vinculada à experiência da culpabilidade. Isto faz necessariamente com que o sentimento de culpa apareça como o mais importante problema no desenvolvimento da civilização, o que demonstra que o preço que pagamos por nosso avanço em termos de civilização é uma perda de felicidade (Glückseinbusse) pela intensificação do sentimento de culpa5.
A sua maneira, Freud marca um ponto de inflexão das promessas de uma política da felicidade própria à modernidade. Freud não vê como tarefa sua pensar modos possíveis de reconciliação no interior da esfera do político. Isto, Lacan sabia ao afirmar que, a respeito da felicidade, Freud reconhece que não há absolutamente nada de preparado, nem no macrocosmo, nem no microcosmo6. Mas quais são as consequências políticas deste despreparo?
Uma destas consequências é o simples abandono de uma política da felicidade. Lembremos como nosso tempo conseguiu marcar com o selo da obsolescência e do totalitarismo toda articulação entre satisfação subjetiva e os imperativos de universalidade. Nada mais suspeito atualmente do que falar em universalismo, e principalmente no que diz respeito ao sexual. Neste sentido, nós poderíamos mesmo falar em um deslocamento da política da felicidade a um outro paradigma que poderíamos chamar de política do gozo. Trata-se de uma política marcada não mais pelos imperativos de adequação entre Lei e satisfação subjetiva, mas pela possibilidade de uma relação de imanência com um gozo que se conjuga no particular, gozo que seria modo de assunção da multiplicidade plástica e infinita da sexualidade.
A política do gozo não reconhece a legitimidade de nenhum apelo ao Universal ou a uma Lei universalmente partilhada. Contrariamente à política da felicidade, a política do gozo defende, por exemplo, a singularidade da produção indeterminada de identidades sexuais como espaço privilegiado de reconhecimento político. Isto nos leva, por exemplo, à política de identidades, ao multiculturalismo liberal, à política de gêneros, entre outros.
No entanto, há várias críticas que podemos fazer ao projeto utópico da pós-modernidade, projeto que pode estar travestido de hipermodernidade (que nada mais é do que uma visão liberal que compreende a modernidade como espaço vinculado ao advento do individualismo, do mercado e da liberdade, ou seja, individualismo que se afirma no mercado através da liberdade de escolha de opções disponibilizadas no mercado). A utopia da afirmação e da performatividade de singularidades puras parte do pressuposto de que estamos vendo o advento de uma sociedade não-repressiva. Fim da repressão do eu, fim da repressão de uma felicidade que deve necessariamente enquadrar-se no universal, advento da flexibilidade e o do Risco como categoria ontológica do ser-no-mundo contemporâneo, entre outros.
Creio que, ao contrário, devemos estar atentos para as técnicas disciplinares em ação nas sociedades contemporâneas. Ela pode nos mostrar como a utopia pós-moderna pode transformar-se, na verdade, em esquema de legitimação de práticas de poder na sociedade capitalista de consumo. Devemos nos perguntar então como o poder se constitui na contemporaneidade.
Tal pergunta é central porque o poder não se constitui mais a partir de processos repressivos, mas através de uma ética do direito ao gozo. Lembremos que o discurso do capitalismo contemporâneo precisa da procura ao gozo que impulsiona a plasticidade infinita da produção das possibilidades de escolha no universo do consumo. Ele precisa da regulação do gozo no interior de um universo mercantil estruturado. Ou seja, não mais a repressão ao gozo, mas o gozo como imperativo. Daí porque ele nos lembra que o verdadeiro imperativo do supereu na contemporaneidade é: Goza!. Ou seja, o gozo transformado em uma obrigação.
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