sexta-feira, outubro 15, 2004


Foto Sebastião Salgado


Violência silenciosa
FREI BETTO

Eric Weil observa com muita propriedade, em sua "Filosofia Política", que a principal característica do Estado moderno é o monopólio da violência. Outrora, senhores feudais maltratavam seus servos, assim como chefes militares condenavam subalternos à pena capital. Agora, só o Estado detém esse direito. Só ele pode legalmente suprimir a liberdade de um cidadão, cassar-lhe os direitos, vasculhar as suas contas, grampear o seu telefone, bani-lo e, em muitas nações, decretar a sua morte. Há países em que nem mesmo os pais têm o direito de castigar fisicamente os filhos, sob pena de estes buscarem proteção da lei e se afastarem do convívio familiar.
O que os filósofos políticos não abordam é essa violência silenciosa, porém não menos cruel, da progressiva condenação de uma pessoa à exclusão social. Essa é uma característica intrínseca ao sistema capitalista, que enriquece uns poucos à custa da pobreza de muitos, sobretudo nessa etapa neoliberal, em que a especulação financeira predomina sobre o investimento produtivo.
Basta examinar a questão fundiária no Brasil, onde há muita terra para poucos e pouca terra para muitos, provocando essa pressão demográfica sobre os centros urbanos, acelerada pelos fluxos migratórios em que a fuga da carência significa o encontro da miséria
O que os filósofos políticos não abordam é a violência silenciosa da progressiva condenação de uma pessoa à exclusão social
A violência silenciosa do Estado não é amparada nem condenada pela lei, pois se legitima pela "fatalidade" das atuais estruturas sociais e dos paradigmas da economia de mercado. Assim, avalia-se o crescimento de uma nação pelo aumento do PIB -mero exercício de econometria-, e não pela qualidade de vida da população ou pelo aumento do poder aquisitivo dos trabalhadores.
Por força de medidas macroestruturais, como ajustes fiscais, superávit primário e balanço de pagamentos, milhões de seres humanos são progressivamente privados de acesso à renda, ao trabalho, à terra, aos bens essenciais, à sobrevivência. Empobrecidos, vêem-se obrigados a morar em acampamentos rurais ou favelas urbanas, sem direito à saúde, à educação e à informação. E uma parcela desses excluídos, afetada por distúrbios mentais, pela depressão decorrente do desemprego ou pelo absenteísmo, vitimada pelo alcoolismo ou pelas drogas, acaba na rua, sobrevivendo da mendicância.
Essa violência que, no mês passado, emergiu com uma brutalidade que nos escandalizou e desafiou -a dos massacres de moradores de rua por quem faz do preconceito uma arma letal- é precedida e favorecida pela violência silenciosa do poder público, que não se empenha o suficiente para promover políticas emergenciais que ponham fim à população de rua nem implementa políticas estruturantes que erradiquem a miséria.
Aqui não se trata de discutir qual governo, de que época ou partido, fez ou deixou de fazer. A questão é mais profunda: o Estado brasileiro, desde o período colonial, permanece engessado pelos interesses dessa parcela dos 10% da população que detêm cerca de 45% da riqueza nacional. E, hoje, o ajuste fiscal não se coaduna com a responsabilidade social. Se ficar, o bicho come; se correr, o bicho pega. Sobretudo quando não se tem, para o Brasil em que vivemos, um projeto e uma estratégia de desenvolvimento sustentável para o Brasil que nós queremos. A política amesquinha-se quando perde o horizonte utópico. E as nossas vidas também.
Como me disse o jornalista Chico Pinheiro, "o sangue do Cordeiro foi derramado nas ruas de São Paulo". E também de outros Estados. Mas ele não lava os nossos pecados; ao contrário, denuncia-os. Pois como explicar essa nossa capacidade de conviver tão insensivelmente com pessoas criadas à imagem e semelhança de Deus e, no entanto, excluídas, não apenas da vida social, mas também de um teto ou de uma terra onde possam se abrigar?
Condenados às ruas, esses seres humanos se misturam com sucatas, insetos e lixo, degradados em sua dignidade. Muitos, como algumas das vítimas de São Paulo, não são apenas sem-teto. Chegam ao extremo de ser sem-nome. Porque não mereceram a sorte da loteria biológica: nenhum de nós escolheu a família e a classe social em que nasceu. Se não estávamos no lugar daquelas vítimas, foi por mero acaso.
O justo seria todos nascerem com direito à plena cidadania, sem o risco de terem as suas vidas abreviadas pela miséria e pela violência. Mas, para isso, é preciso um Estado que renuncie à violência silenciosa e faça do combate à desigualdade social uma prioridade, ainda que desagrade aos donos do dinheiro e do poder.

Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, 60, frade dominicano, escritor, é assessor especial da Presidência da República e autor de, entre outras obras, "Típicos Tipos - Perfis Literários" (A Girafa).
Fonte - Folha Posted by Hello

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