Da velha benemerência às novas intervenções solidárias, o voluntariado busca sua identidade. Quem pensa em aderir deve antes definir como e por que.
De todas as categorias de trabalhadores, a do voluntário é a que mais vem sendo "promovida" -o que ajuda a explicar a estatística segundo a qual 54% dos jovens brasileiros querem entrar nessa área. Só não sabem por onde começar. De saída, é difícil situar-se em meio à nova realidade do terceiro setor, segmento que cresceu 157% em seis anos, duas vezes mais que o conjunto de empresas do país, segundo dados divulgados há duas semanas pelo IBGE. São 276 mil organizações sociais atuando em uma quantidade imensa de causas, da preservação do peixe-boi ao empoderamento de mulheres pantaneiras. Na maioria, prestam serviços com o apoio de voluntários -usados às vezes até em atividades-meio, como serviços de escritório. Então, para não correr o risco de virar mão-de-obra escrava, cumprindo tarefas sem objetivo, o interessado precisa se perguntar: ser voluntário para quê?Pode ser para dar o peixe ou ensinar a pescar, ou também para lutar pela liberação do rio. Não que uma coisa exclua outras, mas nesse terreno as visões (e as práticas) são bem polarizadas entre a defesa de direitos e o assistencialismo puro. É bom saber também que há um novo discurso e uma identidade em construção para essa figura que doa tempo e talento a projetos sociais. A dinâmica atual, estimulada por campanhas, focaliza o voluntário por escolha e conveniência pessoal, capacitado para o que se considera hoje uma atividade específica. É o voluntário "profissionalizado", como definem uns e criticam outros.A antropóloga Leilah Landim, do Iser (Instituto Superior de Estudos da Religião), explica como essa onda atrai as pessoas: "Por meio de crenças ligadas à solidariedade, o indivíduo procura de forma autônoma um tipo de integração social, ou uma ponte para o mercado de trabalho, ou uma finalidade para a vida. É o voluntário por opção, que se qualifica para isso, que tem nessa ação algo para contar e acrescentar ao seu currículo".O advogado Marcelo Pinto, 39, que na verdade trabalha como gerente de recursos humanos, acrescentou ao seu currículo a identidade do "doutor Risadinha", figura de nariz vermelho que de quando em quando invade a pediatria do hospital São Camilo, no bairro de Santana (zona norte de São Paulo). Como viaja muito a trabalho, escolheu para atuar a ala "light", de doenças respiratórias: ali as crianças não ficam muito. Então, se o palhaço não aparecer numa semana, ninguém vai se frustrar."É a minha carreira solo. Envolvo as crianças na terapia do riso. Estudo isso há tempos e queria aplicar", diz esse especialista em "gelotologia". "Minha vida mudou. Fiquei mais humano nas relações com sindicatos e funcionários, no dia-a-dia profissional. Além disso, por causa do doutor Risadinha, surgiu a oportunidade de fazer uma palestra na empresa. Percebi que tenho outros talentos." Ele ressalva que voluntário não é para brilhar, é para doar. "Quem busca ser reconhecido vai ter desilusão."Seja qual for o palco de atuação, é bom mesmo ajustar as expectativas, puxadas por todo esse alarde que vem sendo feito por campanhas de governos, empresas e ONGs desde o boom de 2001, "Ano Internacional do Voluntariado". Antes de "fazer a diferença na vida de alguém", como dizem os folhetos de convocação, é preciso ter clareza das habilidades que se quer oferecer e conferir se elas combinam com as necessidades de quem vai ser ajudado."Não estamos aqui para brincar de conto de fadas", diz Anísia Sukadolnik, 62, diretora do CVSP (Centro de Voluntariado de São Paulo), entidade que faz a ponte entre candidatos e organizações e capacita os dois lados. "Não é fácil. Tem voluntário que escolhe trabalhar com idoso, chega ao asilo, não gosta do cheiro, fica deprimido porque o velhinho não o reconhece. Tem que refletir, escolher bem o público que fala mais ao coração."Na percepção da diretora do CVSP, que neste ano já atendeu 8.869 interessados, muitos são levados por sentimentos de reciprocidade (quem teve parente com câncer tratado por uma instituição vai trabalhar lá, por exemplo), outros querem interagir com diferentes classes sociais, outros, ainda, vão atrás de uma vaga de voluntário por saber que as empresas valorizam essa prática.Ajudar desconhecidos é uma atitude que já teve menos prestígio por aqui. Enraizado no assistencialismo, o trabalho voluntário foi usado pela primeira vez em 1543, na Casa de Misericórdia de Santos. Serviu de trampolim social, foi coisa de madames piedosas-ociosas, embora a solidariedade seja uma tradição nacional, em toda classe -ainda que na periferia os integrantes de um mutirão ou a vizinha que olha as crianças não sejam chamados de "voluntários". Hoje, a ação social aparece mais diluída entre as classes, como mostra pesquisa do Ibope realizada neste ano com o Faça Parte. Mas não se fala mais em "fazer caridade". Fala-se em "fazer o bem".Bem ou mal, o voluntariado brasileiro vem mudando de perfil e linguagem, diz Eduardo Cravo, 40, do Grupo de Estudos da Ação Voluntária. "O discurso mais piegas traz o descrédito. É preciso desmistificar esse lado bonzinho. Embora diversas ONGs ainda reproduzam aquela benemerência do começo do século 20, o trabalho voluntário é hoje o grande agente de transformação social."Cravo se diz fruto desse poder transformador. Formado em química, tinha medo de falar em público, mas a militância religiosa o fazia correr escolas e centros espíritas, divulgando a doutrina. "Falava solto, sem compromisso, até que virou paixão dar palestras. Fiz cursos, me especializei, perdi o medo. O trabalho voluntário dá poder às pessoas."Hoje trabalhando (e ganhando) como consultor na área social, ele defende a profissionalização. "Para atingir resultados e ser mais eficiente, temos que adaptar ferramentas e insumos usados nas empresas, como recrutamento, seleção e treinamento, sem nos deixar contaminar pela lógica competitiva do mercado."Segundo Cravo, as organizações sem fins lucrativos começam a se preparar melhor e a adotar programas de gestão de voluntariado. Na visão dele, as ONGs têm o compromisso de transformar a vida não apenas do público-alvo mas também de quem trabalha para elas. "As entidades não podem enxergar voluntariado como simples redução de seus custos. Elas são o espaço de participação social dessas pessoas. Precisam burilar os voluntários, ajudá-los a dar um salto de qualidade. Ninguém dá nada de graça, quem se doa quer uma contrapartida", diz ele."Voluntário não está ali para garantir lugar no céu. Espera pelo menos ser levado a sério e ter apoio para desenvolver um trabalho conseqüente", reforça Juny Kraiczyk, 30, psicóloga ligada ao Instituto Ecos (Educação e Comunicação em Sexualidade). Aos 21, conta, viveu uma experiência traumática em uma ONG de atendimento a vítimas de abuso sexual. "A entidade, como muitas, usava voluntário para tapar buraco, por não dar conta da demanda. Não havia troca de conhecimento nem supervisão. Eu era tratada como descartável, como se não fizesse parte do organismo."Segundo a psicóloga, surgiam situações para as quais ninguém estava preparado, como agressões e violência entre as crianças. Ali ela começou a ver que o trabalho voluntário também pode ser um ato irresponsável. "O mundo é permeado pela relação com o dinheiro. As pessoas em geral não aceitam que alguém que não cobra nada possa estar qualificado e interessado em eficiência." Juny ainda doa tempo para a ação social, promovendo encontros internacionais de jovens ativistas. Ela acredita que uma relação mais produtiva entre as entidades e os colaboradores passa pela formalização: "É bom explicitar que troca está sendo feita e quais são as expectativas da ONG e do voluntário, de preferência por escrito, burocratizado mesmo". Um contrato pode inibir abusos e distorções conhecidas no meio, como o recrutamento de jovens com promessas de emprego no futuro.Outra distorção seria a pressão de empresas para envolver funcionários em projetos sociais, o paradoxo da "obrigatoriedade voluntária". Anísia Sukadolnik, do CVSP, diz que isso não acontece. "Quando se quer criar uma nova cultura é preciso fazer uma certa pressão. Se bem que não é pressão, porque as empresas só podem estimular e incentivar. Nos programas de voluntariado empresarial, orientamos para que o processo seja democrático, para que os funcionários sejam ouvidos sobre o que gostariam de fazer. Além disso, o funcionário sabe que, se a empresa coagir, a lei trabalhista está aí".A empresa empurrou a engenheira Carla Caldas, 34, para o voluntariado, mas de um jeito indireto. Dois anos anos atrás, era gerente de uma multinacional: "Minha função me obrigava a demitir muita gente. Chateada, fui procurar alguma coisa gratificante para fazer". Primeiro bateu na porta de duas escolas, pegou os endereços de uma campanha da TV. "Não fui bem recebida, não souberam me aproveitar". Achou sua praia na ONG Gotas de Flor, que atende a populações de favelas. "Dou aulas de inglês toda semana, coisa que nunca tinha imaginado. Com essa chance de estar próxima de uma realidade diferente da minha, meus problemas ficaram menores."Um ano atrás, Carla se desligou da múlti. Enquanto busca recolocação, já está na sua segunda turma de alunos e ainda dá consultoria gratuita em gestão para ONGs. Mas não pensa em passar de voluntária a funcionária no terceiro setor. "Poucas ONGs empregam profissionais com bons salários."A Gotas de Flor administra 140 voluntários nos seus projetos de educação, formação profissional, geração de renda, saúde. O segredo para manter gente como Carla, formada pela USP e especializada em marketing, é dar a quem trabalha a mesma atenção dispensada à comunidade-alvo, diz Denise Robler, 49, fundadora da entidade. "Voluntários querem acompanhamento, transparência. Precisam ser envolvidos em tudo o que acontece. Às vezes são mais carentes que os meus meninos. Esperam reconhecimento, isso é fundamental."Além de um retorno sistemático sobre a qualidade do trabalho, a instituição deve dar ao voluntário o direito de opinar e uma mínima definição de tarefas e papéis (parece óbvio, mas não é, quando se conhece a indigência estrutural em que opera boa parte das ONGs). Essa é a receita de motivação prescrita por Simone Levisky, 39, do grupo Gatis (Gestão e Articulação do Investimento Social). Ela pondera que, quando se fala em profissionalizar voluntário, a idéia é dar a ele condição de agir com profissionalismo, sem exagerar ou colocar os procedimentos acima dos fins. "A burocracia excessiva também pode comprometer a essência do trabalho de quem é motivado por um sonho".O sonho é cada vez mais um projeto pessoal e varia tanto quanto a recompensa alcançada, como se vê na fala de Simone: "O voluntariado é uma forma para que os jovens encontrem opções de trabalho e novos relacionamentos e desenvolvam habilidades que podem não estar sendo exigidas na atividade remunerada. Por isso, quem é especialista em informática não deve se oferecer para montar a rede de computadores. O melhor é fazer uma coisa diferente".Diferente mesmo foi o jeito encontrado pelas sócias Renata Brandão, 25, e Alice Freitas, 24, para combinar a contribuição solidária com o sonho de correr o mundo. Em 2003, as duas esquadrinharam 35 países da Ásia pesquisando iniciativas bem-sucedidas de combate à pobreza. Voltaram com "metodologias sociais" nas mochilas e, em 2006, devem continuar a aventura, pela América Latina. "A solidariedade é igual em todo lugar, mas agora o Brasil vive a banalização e a mercantilização do trabalho voluntário. Virou status. É um valor que, para ser efetivo, precisa ser ensinado desde a infância, nas escolas, como matemática", diz Renata.O Faça Parte vem estimulando o voluntariado entre estudantes. Já certificou 8.500 escolas identificadas com ideais de solidariedade, cidadania e participação. "O jovem quer fazer alguma coisa, é indignado por natureza. Se isso não for canalizado de forma boa, vai acabar entrando na mudança química, que são as drogas, ou na mudança física, que é a violência. Mudar para o bem é transformar a comunidade", diz Priscila Cruz, 29, coordenadora de projetos do instituto.A própria Priscila foi voluntária desde a sétima série até o segundo colegial, num programa de escola orientado por um professor, igual aos que ela promove hoje. Aos sábados, organizava um grupo de teatro em uma favela. "Antes disso, meu mundinho era da escola para o inglês, do inglês para casa. Perdi meu olhar de menina de classe média, passei a enxergar o outro, a aceitar a diversidade e a aprender com outras formas de organização comunitária". Para ela, a experiência faz ainda mais sentido agora: "Depois fiz administração, trabalhei em empresa, tudo como manda o figurino. Quando vim parar no terceiro setor, lembrei daquele tempo. Foi como voltar para casa."Tanto faz, para Priscila, se a motivação primeira para aderir a um projeto é agradar ao professor ou ao chefe, aparecer na TV ou entrar na ONG de uma estrela do esporte. "A conscientização vem no processo. Toda ação voluntária é educativa. Nas escolas, batemos na tecla do compromisso, da continuidade, da insistência, porque é com o tempo que a pessoa descobre a motivação real, vê o resultado no sorriso de uma criança, avalia se escolheu o público certo, se é o seu lance."A coordenadora do Faça Parte acha natural o fato de, agora, ser cada um com a sua causa. "As comparações com gerações mais politizadas atormentam os jovens, eles se sentem diminuídos no estereótipo de alienação e consumismo. A juventude não está unificada, não tem bandeira, mas o mundo não é mais um binômio, não tem direita ou esquerda. Tem uma explosão de caminhos para escolher. O voluntário contemporâneo é anônimo, não é herói nem líder, mas está aí, com a mão na massa, é a mesma coisa. Podem chamar de engajamento, de participação civil, de solidariedade. Eu chamo de voluntariado".A substituição do termo "militância" por "voluntariado" ocorre nos anos 90, quando a idéia da mudança social é abandonada, e os movimentos sociais não são mais do interesse nem da universidade, que substitui esse assunto por estudos sobre governança, filantropia, terceiro setor. Quem aponta é o sociólogo Silvio Caccia Brava, diretor do Instituto Pólis: "O tema do voluntariado surge como um discurso compensatório, trazendo uma visão que desqualifica o pobre, como se ele fosse incapaz de sair de sua situação por conta própria. É a aposta numa relação individualizada, e não organizada".Nos mesmos anos 90, Caccia Brava participou da Ação da Cidadania Contra a Fome e a Miséria e Pela Vida, deflagrada pelo também sociólogo Herbert de Souza, o Betinho. Na época, 30 milhões contribuíram e cerca de 3 milhões se organizaram em comitês. Um marco. "Foi uma revolta ética. Mas o ponto do Betinho não era o prato de sopa, mas envolver o conjunto na doação emergencial de alimentos e na discussão da necessidade de mudanças estruturais." Para o diretor do Pólis (ONG voltada a políticas públicas e que não aceita voluntários), a retórica atual usa mal a palavra cidadania: "Cidadania é a capacidade do cidadão de decidir sobre sua vida, e a prática do voluntariado vai no sentido contrário, nem sempre está sintonizada com as necessidades das comunidades. Não adianta dar comida quando o que falta é água. Se a história e a cultura de quem está sendo atendido são negligenciadas, vira imposição".Na visão de Brava, o elogio da ação voluntária cumpre uma função ideológica. "No marco da filantropia, o voluntariado não apresenta possibilidade de resultados. Assistencialismo não transforma nada. O voluntário cuida, ensina, alivia, mas não vê a sua aposta realizada. Como no discurso da responsabilidade social das empresas, é o mesmo tipo de resposta a um não-projeto".O novo voluntário urbano e "profissionalizado" é um fenômeno mundial. Segundo Leilah Landim, uma das autoras de "Doações e Trabalho Voluntário no Brasil" (Iser, 2000), a França até discute uma remuneração para esse grupo, que vem aumentando muito. "Um dos motivos para essa procura pelo voluntariado é o individualismo negativo, a quebra de laços sociais entre as pessoas. Talvez essas características possam ser aplicadas ao Brasil, entre segmentos das classes médias, além de fatores como as dificuldades de emprego para jovens, da precariedade das aposentadorias, enfim, da crise das políticas de proteção social", diz ela, que vive em Paris.De acordo com a antropóloga, essas ações de incentivo ao voluntariado abrem cenários contraditórios: pode ser a "refilantropização" do problema social ou o estímulo de práticas que conduzam à participação cívica, o elogio da caridade individual ou a promoção da entrada de novos agentes no espaço público. "É um campo de diferentes possibilidades, onde cabe, sobretudo aos poderes públicos, investir nas positivas."
Heloisa Helvécia free-lance para a Folha
Números do voluntariado no Brasil
83% das pessoas envolvidas são mulheres, e a maioria tem mais de 30 anos. Homens voluntários são mais "desinstitucionalizados", não aparecem nas estatísticas.
Têm algum tipo de atuação voluntária 29% da população da classe A, 24% da classe B, 15% da C e 8% das classes D e E.
35% da população com nível superior de ensino é voluntária, contra 19% no grupo com superior incompleto e 9% entre os com ginásio (fundamental) incompleto.
"Doações materiais" lidera o ranking de áreas de atuação, com 29%. "Assistência a doentes" concentra 23%, e a área classificada como "cidadania e direitos humanos" reúne 14% dos voluntários.
Fonte: pesquisa do Ibope em parceria com o Faça Parte (Instituto Brasil Voluntário), 2004. Amostra de 4.597 entrevistas com pessoas acima de dez anos em Belo Horizonte, Curitiba, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Salvador, São Paulo, no Rio de Janeiro e no Distrito Federal.
terça-feira, dezembro 21, 2004
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